Carta à Comunidade Acadêmica da Universidade Federal Fluminense

À Comunidade Acadêmica da Universidade Federal Fluminense

A pandemia da covid-19 criou um momento único na História da humanidade. Um momento caracterizado pelo isolamento social compulsório, o que significa a limitação das interações sociais presenciais e paralisação de inúmeras atividades para evitar a disseminação do vírus. Tal situação, em escala global, nos coloca diante de uma situação inédita causando profundas transformações nas formas de sociabilidade atual. Por isso, acreditamos que não é possível darmos continuidade às atividades profissionais como se nada estivesse acontecendo.

A conjuntura excepcional causada pela epidemia é severamente agravada pelas graves crises política e econômica brasileiras, caracterizadas pelo aumento das ações autoritárias e flagrante irresponsabilidade do Estado brasileiro, em particular o Governo Federal, em lidar com a ameaça sanitária e seus impactos econômicos e sociais.

Diante desse quadro, assistimos a emergência de um discurso que afirma a transformação estrutural da sociabilidade. Tal discurso vem sendo denominado de “novo normal”. A afirmação, sem dúvida, é desprovida de conteúdo histórico concreto que nos permita fazer tal diagnóstico de forma tão prematura. Não estamos afirmando que tudo ficará como antes, no entanto, não podemos afirmar que o “novo” já surgiu e se tornou a nova sociabilidade histórica. Assim, o atual momento exige, antes de tudo, reflexão sobre como chegamos até aqui e o que queremos construir daqui para frente.

Nesse contexto, na Educação, o “novo normal” tem se manifestado na sentença definitiva da adoção acrítica e generalizada de formas de educação não presenciais, inclusive trazendo confusão entre as estratégias e ferramentas de Ensino Remoto Emergencial e à Educação a Distância (EaD). Compreendemos que tais formas são legítimas, atendem a demandas sociais específicas e tem bases pedagógicas, teóricas e metodológicas próprias, assim como uma estrutura técnica necessária para a sua realização. Portanto, não se trata, em absoluto, de negligenciar ou desmerecer tais possibilidades de educação e ensino, mas refletir sobre suas possibilidades e seus limites em contextos adequados.

Ademais, têm sido flagrantes os ataques que a Universidade pública e a ciência brasileirade modo geral, vêm sofrendo tanto por parte do governo federal como por pressões de interesses privados. Os ataques são de várias modalidades, desde o corte de recursos, passando pelasacusações de cunho ideológico, até chegar ao discurso da desvalorização da produção do conhecimento científico, culminando no processo de sucateamento das universidades públicas. É válido ressaltar que as Universidades públicas brasileiras são responsáveis pela maior parte da produção científica no país e isso não é pouco em uma sociedade que vive sob carências generalizadas. As pesquisas têm contribuições efetivas, incluindo, além do pensamento crítico, essencial para a formação da cidadania, contribuições a diversos campos do conhecimento, como as áreas da saúde e da biossegurança, tão importantes no combate à pandemia.

Afirmamos que é primordial reconhecer que a Universidade pública tem objetivos sociais, políticos, econômicos, culturais e tecnológicos que demandam um tempo de reflexão, no desenvolvimento do pensamento e da pesquisa, exigindo compromisso e aporte de recursos do Estado em todas as suas áreas, sem hierarquias de saber, dentro de uma perspectiva de elevado rigor científico e de defesa inegociável da democracia.

A Universidade pública deve se manter alerta contra as ameaças internas e externas, tais como cortes orçamentários, desrespeito à autonomia, ao pensar e à liberdade de aprender e ensinar. Por isso, deve atentar a toda e qualquer forma de mercantilização da educação.

Nessa perspectiva, vemos com apreensão a substituição das atividades de ensino presenciais por atividades remotas com a mediação de ambientes virtuais de ensino. Não podemos deixar que a situação de emergência sanitária, causada pela pandemia, seja utilizada para a implementação de uma educação não presencial de qualidade discutível, cuja implementação, no âmbito de toda a Universidade, poderá significar a precarização do trabalho docente, de servidores administrativos e técnicos, o corte de investimentos e a perda de qualidade do ensino.

Considerando um contexto de flexibilização de isolamento social, em que a adoção parcial dessas medidas se mostra inevitável, ressaltamos que a UFF e as instâncias superiores do Estado devam garantir equipamentos, apoio de profissionais de comunicação, treinamento aos docentes, proteção aos direitos audiovisuais e garantias de que tais conteúdos não sejam
eventualmente usados de forma distinta aos objetivos para os quais eles tenham sido inicialmente produzidos.

Adicionalmente e não menos importante, deve-se salientar a precária infraestrutura física e técnica, de acesso à comunicação, equipamentos, dispositivos e plataformas necessárias para que os discentes possam ter acesso pleno aos conteúdos e às atividades pedagógicas não presenciais, de maneira que estas sejam efetivadas, de modo a preservar o padrão de qualidade estabelecido no inciso IX, do artigo 3o da LDB, e no inciso VII, do artigo 206 da Constituição Federal. Assim, enquanto não houver a possibilidade real e concreta de igualdade de condições para o acesso a essas atividades pedagógicas não presenciais, sua implementação não será viável, posto que implicará no aumento das desigualdades no processo de ensino e aprendizagem.

Ressaltamos também os aspectos relativos à saúde mental dos professores, técnicos e estudantes e suas reais condições de se dedicarem às atividades acadêmicas durante a pandemia. Em relação ao corpo discente, deve ser dada atenção à ampliação de bolsas e auxílios que permitam aos estudantes passarem da melhor forma possível por esse período.

Por fim, há de se considerar as condições específicas dos campi fora da sede, em particular da UFF de Campos dos Goytacazes, onde são precárias as condições de infraestrutura física e de equipamentos. Nesse âmbito, podemos citar a rede de comunicação deficitária, o número de computadores insuficientes e o comprometimento de seus espaços físicos, que se expressa na irregular oferta de sala de aula, de laboratórios e dos núcleos de pesquisa e extensão, além da já conhecida ausência de moradia estudantil e de restaurante universitário. Estas condições específicas que, em si, já resultam em graves problemas de evasão e permanência tendem, na atual conjuntura, a acentuar as desigualdades no interior da própria Universidade.

Isso posto, comunicamos a nossa disposição para o enfrentamento da situação e para pensarmos juntos possibilidades de retomadas das atividades com segurança, com o devido planejamento das atividades emergenciais a serem adotadas durante a pandemia, desde que as condições adversas acima mencionadas sejam minimizadas, de maneira a não agravar as condições de vulnerabilidade social de nossos estudantes e a não expor os docentes, discentes e servidores técnicos e administrativos à contaminação.

Desse modo, é preciso planejar ações com: um plano para as atividades emergenciais que já está em curso, mas prescinde da participação ampla da comunidade acadêmica; um plano de retomada de curto e médio prazo, que deve envolver toda a comunidade acadêmica para a adoção de alternativas pedagógicas de ensino, pesquisa e extensão, enquanto durar a pandemia; e um plano de longo prazo para adaptação dos ambientes à retomada das atividades presenciais.

Sugerimos que sejam utilizados os instrumentos normativos já previstos no Regulamento dos Cursos de Graduação para mitigar a situação dos alunos formandos, como, por exemplo, o aproveitamento de Créditos através do Exame de Proficiência.

Por fim, na crença de que haja convergência com as nossas preocupações acima expostas, reproduzimos parte da nota da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Geografia, que propõe critérios para a elaboração de um planejamento de ações durante e após a pandemia: a) o envolvimento e posicionamento dos discentes; b) a garantia de equipamentos, suporte tecnológico e condições de trabalho a docentes; c) a plena acessibilidade dos alunos a equipamentos e rede de comunicação sem ônus (financeira, de tempo e sobrecarga de trabalho); d) o impedimento de qualquer imposição a docentes e discentes em sua realização; e) a garantia de revisão de prazos das atividades disciplinares.

Reforçamos aqui nosso compromisso com a educação pública de qualidade, laica, plural e diversa, conscientes de que o atual momento se mostra como uma oportunidade de demonstrarmos nossa resiliência e criarmos formas coletivas de enfrentamento à pandemia. Assim, expressamos de forma clara nossa posição de que esta situação excepcional não seja usada para promover a substituição sumária de nossas atividades presenciais por um sistema remoto irreversível, que venha erodir os princípios e valores da Universidade Pública.

Departamento de Geografia de Campos – GRC

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